O DIÁRIO DE ATMA – AMOR A DEUS.
Rio, 4 de fevereiro de 2012.
Querido Diário,
Acordei, depois de dormir durante seis horas. Tenho pensado muito em soluções para a editora Favo de Mel a nível mundial, e nos outros negócios de Qualidade de Vida que venho tocando... Levantei, bebi água, respirei bem fundo. Uma ponta de preocupação veio invadir a minha cabeça. “Não, senhor! Xô, preocupação!”, ordenei, e fui para a janela fazer o meu exercício diário de satisfação, vibrando gratidão pelo que eu tenho e que me é suficiente na vida.
Olhei para o céu: azul escaldante. “Obrigada, Senhor, porque tenho olhos para ver essa beleza!” Senti toda aquela abundância de ar... Olhei para as copas das árvores, bem verdes e brilhantes de sol que estavam. “Quanta abundância de vida!”, suspirei, realmente encantada com aqueles fenômenos de prosperidade da Natureza.
Vi as pessoas na rua, umas voltando para casa com um pacote cheio de pão, uma outra parada na calçada conversando com um senhor, enquanto suas crianças brincavam com as flores do jardim do prédio. “Quantas pessoas! Quanta vida!”, suspirei, e só então fui buscar um pedaço de pão na cozinha.
Aquele cheiro de gás escapando do posto de gasolina ao lado invadiu de novo todo o ar, e eu me aborreci. Que injustiça aquilo, eu ser obrigada a respirar todos os dias, várias vezes, aquele ar contaminado! “Eu tenho é que processar esse posto de gasolina,” resmunguei, enquanto passava manteiga no pão.
Foi a minha planta, a Dracena, que me salvou do mau humor, me chamando lá da área de serviço. “Ei, eu quero água!” reivindicou ela. “Você nem veio me beijar ontem! Só beijou a mungubinha...” magoou-se ela, comprovando, mais uma vez, seu poder de visão à distância, pois que eu havia mesmo beijado a mungubinha – a primeira árvore que minha irmã gêmea e eu plantamos na vida – no dia anterior.
“Ah, como as plantas são emotivas... Vocês são como nós, seres humanos!”, vibrei.
Já aprendi bem a falar a linguagem das plantas, fazendo ondular as ondas do pensamento de um jeito suave e bem específico...
Peguei um copo, enchi-o com água do filtro e molhei a terra que abriga a minha amiga do coração.
“Ah, que fresquinho!” fez ela, espichando todas as bolinhas prateadas, e não tão invisíveis assim, na minha direção.
Espichei o meu campo áurico para ela também e, assim, beijei-a. Mesmo assim, agarrei algumas de suas folhas e dei-lhe alguns beijinhos com os lábios também.
Ainda me lembro do dia que a Angélica apareceu com um cachorro lá em casa: a minha Dracena ficou tão desesperada, coitada! Corri ao socorro dela e coloquei-a em cima da máquina de lavar, bem lá no alto, e ela ficou-me muito grata por tê-la ouvido chorar.
Bem, depois do café-da-manhã e de dar água para a Dracena, saí para caminhar e pus-me a fazer mais exercício de gratidão. “Agradeço porque tenho pernas para andar...” eu caminhava e ia dizendo. “Oi, amendoeira,” cumprimentei outra árvore amiga, e continuei passeando. “Agradeço porque tenho olhos para enxergar, porque tenho o dom da vida... porque tenho mãos para escrever... porque tenho Inteligência para raciocinar... Agradeço, agradeço, agradeço...” Virei a esquina e desci a rua que vai dar em uma pracinha, lá em baixo, justo onde fica a Mungubinha.
“Agradeço porque a Mungubinha está crescendo bem forte. Agradeço porque tenho ouvidos para ouvir o cantar desses pássaros maravilhosos... Agradeço, agradeço, agradeço...” eu ia repetindo os meus mantras de gratidão e caminhando, com um leve sorriso no rosto suado do sol quente.
Eu só fechei a cara quando aquele mendigo miserável apareceu na minha frente de novo, andando daquele jeito, feito uma lesma, arrastando os chinelos velhos no chão - que carregam o fardo daqueles pés imundos. A coluna é enrugada para a frente. A pele é marrom e seca de tanto sol, deixando ver os milhares de losangos que formam as linhas dos poros por todo o corpo, como um mapa. A cabeça é oval, quase totalmente careca, contando apenas com alguns cabelos rotos em desalinho. Uma barba inacreditavelmente rala e maltratada cobre o seu rosto velho e sem vida. Na ponta da boca, um cigarro lhe pende dos lábios tristonhos, e aquela barriga murcha parece ir na frente dele, levando-o.
Eu sempre tive muita compaixão pelos mendigos. Mas esse, em especial, me incomoda, porque toda vez que eu apareço na janela, saio de casa ou retorno, esse homem está a passar! No início, não me dei conta, mas, depois, percebendo a sincronicidade, a coisa começou a me irritar. Então quando eu saía de casa e me deparava com ele – sempre se arrastando feito lesma – na minha frente, internamente eu me benzia, “Sai pra lá, mau agouro!”
O lesma passou a ser uma sombra para mim: uma espécie de medo inconsciente que eu tinha que enfrentar.
“Por que ele te incomoda tanto?”, perguntou-me a Paty, no intuito de me ajudar, ministrando os florais necessários para liberar esse padrão de dentro de mim.
“Juro para você que eu não sei dizer bem, Paty. Ele me incomoda porque sempre - mas sempre mesmo! – eu me deparo com ele na chegada e na saída. É como se ele fosse um mau agouro de pobreza na minha vida. Outro dia, eu li que um dos medos fundamentais dos homens é o medo da pobreza. Acho que eu também tenho isso.”
“Hmm...” fez Paty, e anotou algo rápido em uma folha de papel.
“Eu não quero ficar pobre, muito menos virar mendiga!”
“Eu também me preocupo com dinheiro,” disse ela.
“Eu acho que estou em pânico. E esse mendigo só vem me atormentar. Qualquer dia, dou um chega pra lá nele!”
“Por quê você não tenta falar com ele, em vez disso?” sugeriu Paty, iluminadamente.
“Conversar? Ele não fala direito! É um maluco!”
“Talvez você tenha alguma coisa que esse homem precisa. De repente, você pode dizer alguma coisa para ele... Algo que irá ajudá-lo. Já parou para pensar nisso?”
“Não sei o que poderia ser...”
“Tente fazer isso e vejamos o que acontece.”
A Paty sabe das coisas. Achei melhor ouvir o que ela me dizia, por mais que a idéia me parecesse um tanto repugnante.
Outro dia, quando eu chegava em casa, esse senhor passou de novo por mim, arrastando as chinelas no asfalto quente, daquele modo tão incômodo. Aquele desconforto se apoderou de mim, mais uma vez, e eu senti repulsa por ele. Desta vez, entretanto, eu estava disposta a enfrentar aquilo, seja lá o que fosse. Fazendo um esforço sobrehumano, virei o meu rosto para ele, que estava agora sentado embaixo da árvore fícus, bem na frente do meu prédio. É uma árvore que dá boa sombra e, por isso, o pessoal da rua gosta de sentar embaixo dela. Sabe aqueles quadrados de cimento horrorosos que colocam em volta das árvores, no lugar de vasos bonitos? Tem esse quadradão em volta dessa fícus e, assim, o pessoal usa-os de assento com frequência. Na verdade, tem duas dessas fícus em frente à minha portaria, e o mendigo-lesma estava à minha esquerda, enquanto eu enfiava a chave no portão de entrada, para fugir daquilo que me repelia.
Lembrei da Paty e, ao menos, virei o rosto para observá-lo melhor de perto. O mendigo olhou para mim, com aqueles olhos vermelhos demais, e aquele cigarro, como sempre, enfiado na boca murcha.
“Bom dia,” eu disse, e saiu, dos meus lábios, um sorriso tão amarelo que até eu me constrangi com ele.
Não sei se o homem surpreendeu-se com o meu cumprimento, ele olhou para mim, e fez um movimento de leve com a cabeça, e eu não tinha certeza se tinha feito boa coisa ou não.
“Ai, que nervoso desse homem!” abri a portaria de supetão e subi as escadas correndo para bem longe dele, para bem longe daquela pobreza toda.
“Se você tem pensamentos medíocres, então isso fará de você um ser-humano-mendigo, independente da sua conta bancária,” ocorreu-me este pensamento, tão logo vi-me trancada do lado de dentro de casa, tendo trancado a porta e encostado o corpo contra a madeira pesada. Com certeza, um pensamento enviado a mim por auxílio benevolente de algum amigo espiritual, naquele instante.
Deixei a bolsa num canto do quarto, tomei uma ducha bem gelada, bebi um copo d´água, comi uma banana e depois espichei as pernas para cima, deitada no sofá da sala. Fiquei matutando comigo, sobre a frase que me viera de modo tão claro como um relâmpago, assim que chegara em casa. O que seria, de fato, a mediocridade? Eu ouvia as pessoas dizerem, “Não seja medíocre!” ou “Estou farta de tanta mediocridade!”, sempre carregado com um tom altamente pejorativo, mas, ocorreu-me perceber que, de fato, eu desconhecia a origem daquele vocábulo.
Passados alguns minutos de revigorante descanso, recorri ao “tio Google” novamente e, assim, encontrei:
Medíocre. Médio. Ordinário. Comum.
Nem acima nem abaixo da média.
“Ah, é isso?” pensei.
Mas, veja, querido Diário, que a forma como usamos essa palavra é para denotar algo que não é “superior”, “ascencionado”. Talvez “não ter pensamentos medíocres” signifique “elevar o pensamento à Força Criadora Superior” em vez de viver apenas como um “animal humano mediano”.
Um pensamento medíocre (ordinário), por exemplo, é uma pessoa pensar que se ama a Deus enquanto, na verdade, O ama e O odeia ao mesmo tempo.
Certa vez, enquanto eu ainda não havia me formado no curso de Shiatsuterapia, estávamos ainda na fase de atender as pessoas no ambulatório, o que fizemos por seis meses. Os pacientes procuravam a ABACO, pagavam taxa de quinze reais, e recebiam Shiatsu dos alunos, sob a orientação de uma professora.
Num desses dias de ambulatório, fiquei esperando o horário de atendimento começar, o que acontecia às dezoito, e fiquei sentada do lado de fora do ambulatório, em um sofá, perto das pessoas que esperavam para ser atendidas.
Geralmente não iam muitas pessoas, acho que por causa da localização do prédio onde estudávamos, em uma rua meio escondida no centro da cidade. Não sei bem. Mas nesse dia, se não me engano, havia duas ou três pessoas, o que era ótimo, assim podíamos treinar. Esta antessala era, na verdade, o corredor daquele prédio antigo, cujos andares eram, vários deles, ocupados por este curso de Medicina Oriental.
Eu estava com o meu jaleco branco, que havia mandado bordar com o meu nome “Natália Biancovilli” (meu nome de nascença) e procurei sentar-me de um jeito que ele não amarrotasse tanto.
Agora que puxo da mente as memórias daquele lugar, penso em um prédio de um amarelo envelhecido, mas não um tom deprimente, enquanto muito mais é um tom que assemelha-se a um quase marrom-monástico. Marrom terra, aquela que cede o solo fértil, onde tudo acontece. Aquela que é puro desprendimento.
Lembro-me que eu me sentia muito bem ali dentro, tanto por ter tido a coragem de abandonar um estilo de vida que não era para mim, quanto pela companhia de pessoas muito agradáveis, como os novos amigos que fiz por lá – Pedroca, Cleide e outros – tanto quanto por um amor especial que nasceu do meu coração por uma pessoa, naquela época...
Busquei, com os olhos, aquele de quem eu mais desfrutava da companhia, o André, mas uma senhora no sofá, à minha direita – a senhora bem gordinha que esperava atendimento – insistia em entreter-se em prosa comigo, para não ter que suportar os berros do silêncio impossível dentro dela, para que eu a salvasse daquele precipício até que desse o nosso tempo de entrar no ambulatório. Creio que ainda tínhamos cerca de meia hora.
Talvez por ter-se irritado com ela mesma pelo desleixo que ela havia causado a si própria em termos de harmonia de beleza estética, a mulher olhou para mim e começou a falar, fazendo uso das seguintes palavras: “Eu não era gorda assim, não, minha filha. Eu era bonita, magra!”, disse-me ela, com uma certa raiva, denunciada por um movimento estremecido nos cantos de seus lábios duros como mármore.
Meu olhar fora instantaneamente atraído para aquele movimento da ira da Madeira, que não podia mais se expandir, e eu quase pude ouvir o som decrépito de árvores caindo nas florestas, deixando o solo árido e infértil, seco, sem vida. Em vez do verde da vida, apenas um gélido mármore branco estremecia e repelia para longe o calor da vida...
A mulher arfou em uma respiração cansada, e fez com que sua barriga inacreditavelmente grande desse uma balançada. Não sei se a mulher percebeu, mas ela tomou a pança com as duas mãos e submeteu-a a assentar-se de volta em suas coxas suadas, enquanto olhava para mim com um misto de nostalgia e raiva.
Eu estava diante dela, com o meu jaleco branco perfeitamente passado e bordado, meus cabelos castanhos e ondulados presos, com esmero, em um gracioso rabo-de-cavalo. Minhas bochechas, eu as havia colorido om um leve tom rosado cor de pétalas da manhã, e um batom igualmente rosa e delicado coloria os meus lábios, ressaltando o contorno bem desenhado. Meus olhos, que, como o André dizia, são “naturalmente marcantes e parecem estar sempre maquiados”, perscrutavam-na atentamente, das profundezas dos meus lagos castanhos-mel. A minha postura permaneceu ereta e bela, como eu escolhi ser: há tempos aprendi que não preciso me desculpar por ser bela, nem por brilhar. Quem quiser que faça brilhar a sua beleza e o seu brilho natural também, em vez de deixar de aceitar a força dos outros.
Fiquei em silêncio – o que eu poderia falar? Contudo, o meu olhar convidou-a a continuar o ensejo.
“Eu engordei quarenta quilos em oito meses,” arrebatou a mulher, agora com um semblante de velha desgovernada.
“Nossa...” comentei, realmente espantada com a velocidade da coisa.
“Teve uma tragédia na minha vida, minha filha, e eu nunca mais fui a mesma,” dizia, e agora seus lábios de mármore ficaram como suspiros de açúcar que ameaçavam perder a sua forma e despedaçarem-se pelo chão.
Compadeci-me com a triste figura, e senti o meu coração condoer-se com sua misteriosa história de vida, que já devia beirar sessenta invernos.
Também não tinha eu, com tão pouca idade – ainda no início das trinta primaveras – passado por tantas frustrações e desgostos? Lembro-me mesmo de certas vezes olhar para trás e surpreender-me com a capacidade de ter vivido por tanto tempo dentro de um grande vulcão emocional em erupções. Duvidei de ter, em algum momento, tido um controle emocional por tempo o suficiente, nas diferentes fases da minha vida. Estava tudo mudando sempre, constantemente, e percebi que muito mais eu tinha raiva do quão mutante e fora do meu controle eram todos os acontecimentos, do que eu podia lidar com isso e realmente desfrutar de cada dia da minha vida.
Mas também não tinha acontecido nada que me fizesse perder as estribeiras totalmente. Chutei baldes, até mesmo gritei ofensas imperdoáveis, mas, de um modo ou de outro, eu conseguia voltar sempre para o outro lado da minha vida, o lado que eu gostava de ser e queria alimentar dentro de mim: o lado compreensivo e mesmo incoerentemente submisso à vontade Celestial.
“A minha netinha morreu, “ tremeram os lábios de suspiro da velha, e depois esticaram-se repentinamente de volta naquele mármore rijo. A mulher ajeitou a pança de novo na perna, tocou a medalhinha de Nossa Senhora que trazia em um cordão finíssimo de ouro, em seu pescoço cheio de dobras e pequenas brotoejas vermelhas como o incêndio de um fogo enlouquecido, e disse,
“Eu sempre tive muita fé,” revelou, e deu um beijo forjado na Santa. “Sabe, minha filha? Muita fé mesmo.”
A mulher falava, agora não olhando para mim, mas com os seus olhos estatelados em algum lugar fixo de lugar nenhum.
“Mas... tem coisas que acontecem... que não dá para a gente entender...” revelou ela, em seu confessionário particular sem padre nem freira para condená-la ao purgatório das almas ingratas. Franziu a testa mui repentinamente, em uma memória de terrível dor, e, quase engasgando-se, falou, “O jeito que aquela criança morreu... Meu Deus!... Eu me pergunto... Por quê tinha que ser assim?”
Permaneci calada, ouvindo-a atentamente, e meu coração tremia também de dor, só de ver aquele olhar tão triste. Meu Deus, tão triste!
“O que foi que aconteceu com a sua netinha?” indaguei, e nem sei se devia ter feito isso.
“A minha neta nasceu já meio doente, sabe? Eu fiquei um pouco preocupada, mas orei muito, e achei que a garota ia ficar boa. Devia ser só uma fraqueza inicial. Tem muito bebê que nasce meio fraquinho, mas depois pega corpo. Mas, com o tempo, a menina foi piorando, e ficou com um ovo enorme na barriga... um tumor...” contou ela, e parou para respirar custosamente.
“A cara da minha filha no hospital, tentando salvar a minha neta...” falava a mulher, agora chorando, e olhando quase que incomodamente dentro dos meus olhos, de modo que pude sentir a mesma dor que lhe ia na alma, mas com a impotência lacerante de não poder arrancá-la lá de dentro.
“Eu não esqueço nunca mais a cara de desespero da minha filha... No dia que a minha neta morreu... Nós fomos para o hospital, e a minha filha foi mexer no curativo na barriga da criança e o pus explodiu para todos os lados...”, falou a mulher, e os suspiros doces derreteram sua fisionomia cansada em um sem-forma e sem-sentido de mais viver.
“Aquele pus... Aquela ferida horrorosa... Meus Deus... Por quê, meu Deus?!” gemia a velha.
“Eu estava estatelada. Por alguns segundos, mergulhei tão fundo nos olhos daquela mulher, que nem mesmo me olhava, e, com ela, ergui-me no balcão da revolta, e questionei àquele Deus impiedoso, em calados brados internos, “Por quê, meu Deus? Por quê tinha que ser tão horrível assim?”
A resposta que veio não passou de uma indiferença sufocante, que nos fez secretamente nutrir um incontido ódio contra aquele Deus que podia tudo – mesmo as ações mais detestáveis e injustas.
Decerto culpada pelo furor contra aquele a quem antes rezava tantos Pai-nosso, cheia de contentamento e devoção, a velha puxou de volta a Nossa Senhora para si, e deu-na tantos beijos quanto fossem possíveis para martelar em pedaços o gelo do mármore em que eternamente havia perjurado a revolta contra o Pai-Todo-Poderoso.
Quase pude ouvir aquele martírio interno estrondoso: “Ave Maria, cheia de Graça, o Senhor é convosco. Faça-me entender, Tu, que és mãe, como Teu sagrado filho pôde permitir uma injustiça, uma dor dessa tão grande, a uma mãe e uma vó? Faça-me entender, ó, Ave Maria, cheia de graça, já que o senhor é convosco!”
Uma lágrima rolou dos olhos da mulher, e continuava o diálogo furioso, “Quebra-me também, seu grandessíssimo impiedoso! Quebra-me!”, gritava a mulher, enquanto ainda martelava, com a imagem da santa, o frio mármore da revolta dos sentimentos. A santa metalizada não tinha espaço para fugir dali e era obrigada a ouvir as lamúrias, “Antes só a mim tivesses castigado tanto, mas não me fizesses ver o sofrimento dilacerante nos olhos da minha filha! Aquele pus... Putrifico a minha vida!”
Pá... Pá... Pá... Soavam as marteladas da santa mãe de Deus contra os gélidos mares congelados.
“Por que, Deus? Por quê?” condoí-me de ver a loucura à qual fora levada a velha, pela tristeza insuportável.
A porta do ambulatório se abriu e quem apareceu para chamar-nos foi o belo André, por quem eu era mais do que só apaixonada. Eu o amava! E, naquele instante, eu o olhei com os olhos da compaixão eterna, imaginando como ele conseguia estar de pé ali, inacreditavelmente jovial e belo aos quarenta e quatro anos de idade, depois de ter passado pela dor alucinante de perder não só um, mas dois dos quatro filhos que tivera na vida.
Sorri para ele, com ternura, e tentei ajudar a mulher a levantar a sua carga humana do sofá. Não consegui e, creio que não por acaso, foi o André que veio ajudá-la a erguer-se.
Sem saber da história que eu tinha ouvido, o André caminhou para dentro da sala com a velha, apoiando-a levemente pelos ombros.
A intuição do espírito os unia, e rezo até hoje para que aquela mulher receba todos os dias o bálsamo da compreensão dos processos naturais da vida e que, toda vez que ela receba esta dádiva, que também eu possa ter a verde esperança de poder beber desse cálice de brandura, e também o André, e também todos nós irmãos da existência humana.
Será que a vida era algo assim mesmo doloroso, e não tinha mais jeito de ser de outro jeito?
Eu seguia o meu caminho, amando e odiando. Rogando pelo auxílio do Céu por mais compreensão, mas trazia cá comigo minhas sementes de dúvidas, e mesmo injúrias de ingratidão.
Até que hoje ocorreu-me a história do Yosef, meu caro guia espiritual, porque a história de vida dele tem vindo à tona de novo essa semana na minha vida, de um modo muito material, desde o dia que eu fui ao Sebrae e falei com o amigo do filho do Yosef.
“Como é que foi exatamente a história do Yosef?”, perguntei à minha mãe, um dia que os conflitos entre nós estavam brandos o suficiente para trocarmos ao menos algumas palavras civilizadamente.
Angélica, minha irmã gêmea, estava no outro sofá da sala, e eu, eufórica demais para conseguir sentar-me, ouvia-a de pé.
“O nome desse espírito de quem você fala, ele era o tio Antônio em vida. Ele morreu em um acidente de carro, junto com o outro filho dele, o Reinaldo,” contou minha mãe.
“Ah... Era Antônio, né? Mas o nome dele no plano astral agora é José, Yosef...” falei.
Minha mãe não deu atenção a esse detalhe.
“O L.A. Biancovilli também estava dentro do carro no dia do acidente, não sei como ele não morreu...”
“Porque não era a hora,” pensei, como um papagaio que repete idéias programadas sem saber se realmente acredita nelas com a força do coração.
Minha mãe não ouviu meu pensamento insincero, e continuou a narrativa, com um sorriso quase irônico nos lábios, “Ele tinha conseguido uma casa que era a casa dos sonhos dele... Uma casa maravilhosa,” lembrava minha mãe. “Só que depois, o Governo desapropriou aquela casa, e eles tiveram que sair de lá! Daquela casa, que ele adorava!”
“Meu Deus, que injustiça!” bradei, internamente e, se eu pudesse, teria percorrido as luminosas linhas violetas no fundo da imensidão escura da Misteriosa Vida, correndo até encontrar o meu amigo espiritual, o Yosef, e dizer-lhe, “Ó, eu sinto muito! Que terrível perder a casa dos seus sonhos!”
A história do Yosef era um espelho que, como em um filme, me mostrava o quanto eu dava um crédito quase desesperado pelo meu sonho de ter a minha casa própria, e o quanto as minhas frases irrompiam dos meus lábios, quase como baforadas de uma sinistra ameaça contra Deus ou contra qualquer pessoa que tentasse impedir-me de alcançar esse meu intento prioritário na vida: a droga da estabilidade e cachaça da casa própria, sem as quais ninguém podia ser feliz na vida.
Não! Não bastava-me a morada do meu espírito, o meu corpo – dizer isso seria hipocrisia, uma deslavada mentira. O meu corpo, por si só, não era uma morada segura. Eu não queria ser mendiga e morar, com os pés sujos, embaixo de uma árvore na rua. Não! Não bastava-me nem mais só uma casa, eu tinha que ter várias regalias: uma casa própria conquistada pelo meu próprio mérito, e haveria de ser espaçosa, porque eu não sou pessoa medíocre para viver apertada em um caixote d´alma!
Mas, de repente, o espelho da história do Yosef refletia em mim de um modo inevitável e luminoso, e eu de repente me senti enclausurada em um caixote de tolas crenças limitantes, e o meu castelo tão desejado pareceu-me tão inútil para a trajetória da eternidade quanto um castelo de areia amassado pelas ondas do mar, após ter sido abandonado por uma criança.
“ E aí, mãe? O que aconteceu com o Yosef, quer dizer, com o tio Antônio, depois da desapropriação da casa?” perguntei, curiosa.
“Bem, aí o tio Antônio pegou a família e teve que sair da casa. Ah, era uma casa maravilhosa...” lembrou minha mãe, com o olhar distante nas memórias daquele recanto, que era quase um recanto espiritual.
“Talvez se não tivessem desapropriado eles de lá,” continuou minha mãe, “esse acidente não tivesse acontecido.”
“Ué, não entendi. Por quê?” perguntei.
Minha mãe não parecia ouvir as minhas interferências. A Angélica não falava nada. Só ficava sentada no sofá, ouvindo, e de vez em quanto ajeitando os óculos no rosto.
“Estava todo mundo dentro do carro...” continuou então D. Sônia a história.
“Foi no dia da mudança que eles morreram?” quis saber, mas o telefone tocou, minha mãe dispersou, não podia continuar a história. A Angélica tinha que assistir as aulas dela no computador, e eu fui é pegar a bicicleta para dar uma pedalada na Oliveira Belo.
Uma brisa soprou em meus ouvidos, e me fez desistir de pedalar tão cedo, porque eu tive que pegar o meu caderno e anotar o que eu sentia. Veio assim:
“A certeza que a gente tem na vida é a mudança constante de tudo. Tente controlar a vida e seus lábios se tornarão gélidos como o mármore ingrato. O maior bem que você terá nesta vida não será nem a sua casa – que até poderá ser conquistada e desfrutada – nem mesmo esse corpo de carne e ossos - maravilhosos e cheios da sua essência – que temporariamente abrigam a sua força de vida...”
“Qual será então, Yosef, o maior bem que terei nesta vida? Diga-me, meu amigo,” indaguei, e o que tive foi mais uma vez, o silêncio dele.
“Um guia espiritual não dá respostas. Ele te conduz a percebê-las, Atma,” foi só o que ele falou, achando graça de eu chamá-lo ainda assim de “guia espiritual”.
Depois, eu saí de bicicleta, pedalei a beça para manter o meu peso na medida, e também só pelo prazer de sentir aquele vento de fim de tarde batendo no meu rosto... Uma das coisas que eu mais gosto de fazer com a bicicleta é quando eu pego uma rua bem grande e saio pedalando bem rápido, dando bastante impulso e, depois, paro de pedalar e vou apenas sentindo a bicicleta deslizando sozinha, me levando para passear pela rua, e vamos passando pelas árvores de todos os tipos, ouvindo os pássaros, ouvindo o barulho dos cachorros, vendo os gatos pelos muros, os meninos soltando pipa nas férias junto com os adultos já meio barrigudos. E eu vou só indo naquele zuuuuuummmm... Rindo sozinha não sei nem de quê na vida... Apenas sentindo prazer por estar viva, mesmo sabendo de tudo de bom e de ruim que existe neste plano da vida. Ah, sei lá. Mesmo assim, é tão bom sentir a brisa... Sentir a bicicleta indo sozinha, até que ela me peça de novo para recomeçar as pedaladas certeiras, com a força do elemento madeira dos meus músculos, impulsionada pelo fogo da vontade de viver do Mestre do Coração.
Ah, Diário, se hoje eu tivesse que escrever algo sobre o que eu aprendi com a história do Yosef, e com tudo o que eu vi e vivi nas minhas vidas mundo afora, por esse mundão de energia aí, seria assim que eu escreveria:
“O homem grita e se inebria nas dores da injustiça. A Vida vem e se faz vida florida todos os dias, mas nada contém a falta de santosha (satisfação) humana, até que realmente se desperte para isso. O homem sábio é aquele que ama o Reino Mutante da Existência, e com ele não conflita. A todo tempo, Deis derrama a sua sabedoria, repetindo em contos, cantos e histórias a maneira das Leis da Vida, através de diversos ressonadores fiéis à cristalinidade de suas miríades. Mesmo assim, o homem quebra o conto, rasga o canto e desdenha da história, e escolhe encaixotar a sua alma em um palácio gigante que, reluzente com o mais falso ouro da terra, encobre-o de morte sombria, em vez de fazê-lo voar com o sol da vida. Ai do homem que não sabe viver tampouco a fase do ancião da vida! Um velho xamã o convidaria para ouvi-lo, na beira de um lago, sob o crepitar de uma fogueira, e a este pobre homem diria,
‘Saiba desfrutar da fase do ancião da vida.’
Entre uma pitada em seu fumo de rolo e outra, o Xamã diria, ‘Porque nada na vida é sempre a mesma coisa e a mudança nunca foi, é, nem será coisa ruim nessa vida.’
Olhos murchos, pele seca, ossos fracos, dentes caídos. Nada disso importa se o Espírito é Vida, se a Sabedoria é Paz Infinita.
Como disse certa vez o poeta Peregrino, que é o meu companheiro, um dia que eu chorava com saudade da minha vó falecida:
“Quando aprenderes a viver mergulhada na sabedoria do verdadeiro amor infinito, minha querida, nem a morte e nem a dor a farão sofrer.”
“E você sabe, amor da minha vida, viver mergulhado assim no amor? Diga-me a verdade... Eu quero saber,” pedi.
“Eu apenas vivo mais para o ser do que para o ter, anjo lindo...” disse-me ele. “Existem pessoas desgraçadas na vida. Mas elas não são desgraçadas porque não tiveram chance nenhuma. A vida sempre dá muitas chances, são muitos os caminhos... As possibilidades são infinitas, e ficam sobrepostas umas sobre as outras assim, como se fossem escamas de peixe...” disse ele, colocando uma mão por sobre a outra, mostrando-me como era o mecanismo da vida. “Essas pessoas desgraçadas,” tornou ele, “negam a todas as chances da vida.”
“Viver desse jeito é uma desgraça!” disse eu.
“Mas não é porque não existe a Graça Divina. Ela sempre haverá... É a própria pessoa quem nega esta dávida, que é derramada constantemente...”
“É verdade,” comentei, e dei um puxão delicado na barba daquele lindo Peregrino, e puxei aquele belo rosto bronzeado de sol para perto de mim, e dei-lhe um demorado beijo nos lábios.
“Eu só quero ser eu mesmo,” tornou ele, conversando comigo, e comendo uma ameixa fresca, que parecia-me ainda mais linda, com sua casca bem vermelha por fora, e sua polpa de um laranja-avermelhado, e tudo estava de uma coloração prateada e iluminada, porque estávamos deitados no quarto dele no chão, perto da janela, tomando banho de luar.
“Eu quero conhecer as minhas sombras, conhecer todas elas, todos os Eus que habitam dentro de mim, e viver em paz, em paz dentro de mim, ser quem eu sou...” dizia ele, enquanto eu, deitada no colo dele, admirava a beleza daquele homem tão bonito, e muito mais a sinceridade e a pureza daquele espírito. A prata da luz da lua descia, em seus raios finos, e tracejava o lado esquerdo daquele corpo nu que me abrigava em seu colo, e ele me ofereceu uma dentada na ameixa suculenta.
Fechei os lábios, mostrando que eu não queria aquela fruta, e ele afastou-a da minha boca, achando graça porque eu não a queria, já que estava olhando tanto para ela. “É porque essa fruta está muito bonita, vermelha e laranja, e ainda meio prateada com o brilho da lua,” expliquei, e o Peregrino me olhou de um modo tão amoroso que eu só me deixei ficar ali, ganhando aquele cafuné gostoso, enquanto ele saboreava mais uma dentada naquela polpa.
Ah, essas são as coisas boas da vida... Um fresquinho de luar em uma noite quente de verão... Corpos nus, espíritos livres, verdades sinceras e conhecimento das sombras... Gratidão pelas pequenas coisas, esperanças ensolaradas de um tudo, mergulhar no amor sem medo do escuro, sem inveja, sem ciúme, sem rancor e com perdão de tudo que já houve na vida.
“Senhor misterioso Deus, amo-te!” pensei, sinceramente, e o meu peito encheu-se de alegria.
“O que foi, amor? Me diga?” olhou-me o meu querido, com olhar risonho, depois de chupar o caroço da ameixa e lamber os dedos da mão.
“Só estou feliz,” respondi.
“Eu também estou. Muito feliz,” confessou ele, mas isso os olhos dele já me diziam.
Atma.