(Esse trecho vai entrar para o livro "Na Montanha das Corujas - sequência do livro "Os Anjos não usam Relógio". Este é um fato verídico que está acontecendo esta semana.)
Vejo pés de negros sujos... tocando a terra da senzala, cheia de mato crescido. Pés pesados, com estruturas largas. Um par de pés me chama mais atenção: é especialmente forte, parece ter a força de dez homens em um só.
"Você não se apieda daqueles homens?", questionava Dalva ao seu avô, que jantava com eles aquela noite, na Casa Branca dos italianos (Minas Gerais).
Afonsuelo irritou-se. Largou os talheres ao lado do prato, pegou o lenço branco de algodão puro e limpou as barbas. "Apiedar-se de quê?!" contraiu-se em uma súbita crise de ira. "Aqueles não são homens! São bichos! Selvagens! Não vês como se comportam quando lhes damos um pouco de liberdade?! Esses negros foram feitos para serem criados assim: cerceados! Como bichos que são!"
Dalva (encarnação anterior de Atma, na fazenda de sua família, em Minas Gerais) baixou a cabeça e fez força para tentar impedir que as lágrimas começassem a rolar pelo seu rosto.
Bento resignava-se na senzala. Estava ele e mais Zuber - nome africano que significa "valente" - em uma parte afastada dos outros. Estavam no castigo. Um corretivo que os machucava profundamente em sua dignidade de homens: estavam no galpão das bolas de aço. Era onde os negros fujões e encrencões iam parar. Os calcanhares eram presos com tornozeleiras de aço, soldadas em uma cadeia de anéis de aço, soldados uns aos outros de maneira infalível, formando uma corrente incorruptível, que trazia à ponta uma bola de aço pesadíssima e enferrujada, que tornava impossível o escape, mesmo de um homem como Zuber.
Zuber estava sentado agachado, sem recostar-se em nada. Bicho cabreiro. A luz da lua refletia seu olhar cheio de um ódio sinistro. Bento olhava para ele e apiedava-se. Diferente de Zuber, e espírito de Bento estava cansado de odiar. Sua vibração já não suportava mais trazer dentro do peito vibrações tão densas como aquele ódio sinistro que via em seu companheiro. Aquele desejo de vingança.
Bento apiedava-se de Zuber, e tentava ajudá-lo. "Ara, larga disso! Resignação, Zuber! Resignação! Nós nascemos nessa condição: temo que guentá! Os Orixás mesmo já nos disseram que aqui em Terra é prova para o nosso espírito! Aqueles lá (apontou para a Casa Branca) hão de pagar um dia pelo que fazem a gente passar. ELes hão de se ver com a força de todos os Orixás e de Oxalá!" Dizia isso por uma questão de justiça, mas sem ódio no coração. Pensou em Dalva com doçura. Rezaria para que Oxalá pudesse aliviar o karma dela, e das crianças da Casa Branca. Pobres almas! Não sabia quem sofria mais: os negros em Terra, ou os brancos, depois que morriam!
Zuber continuava agachado. As finas vibrações da resignação emanavam de Bento, porém encontravam dura resistência em seu espírito.
Ódio. Humilhação. Orgulho. Eles não tinham o direito de fazer isso com eles! Só porque a cor da pele era diferente! Oxalá ia fazê-los prestar contas! E ele haveria de ser a mão de Oxalá para fazer com que a justiça de aço fosse feita! Justiça de aço! Tais como as bolas de aço que o prendiam naquele terreiro de humilhações e terror.
"Atma! Acorda!" gritou Angélica, assustada.
"Que foi, minha nossa senhora do céu?!" reclamou Atma, em péssimo humor, acendendo a luz do quarto. Olhou o relógio, irritada. "São duas horas da manhã, Angélica! Tá ficando maluca? Amanhã acordo cedo?"
Os olhos de Angélica estavam cheios de medo. "É o barulho dessas bolas de aço no teto de novo... Não me deixam dormir!"
"Já te disse que devem ser ratos," mentiu Atma. Queria voltar a dormir.
"Ratos?" indignou-se Angélica, com a cara-de-pau da irmã. Ela sabia muito bem que ratos não poderiam fazer aquele tipo de barulho.
"Ratos, sim," continuou Atma. Não queria ficar dando sentidos imaginativos a barulhos esquisitos. O bom cientista investigador não podia fazer isso. Haveria de ser uma tubulação antiga do prédio que permitia que os ratos pulassem, entre um andar e outro. Eles deviam estar caindo desta tubulação, fazendo aquele barulho sinistro, e o som que parecia ser de bolas de aço rolando ou se arrastando pelo teto, haveria de ser esses ratos correndo pela tubulação.
Angélica continuava com cara de quem não acreditava na teoria dos ratos. Mas, fazer o que? Já tinham brigado com o vizinho que, muito sem graça, havia prometido tentar fazer menos barulho de noite. Mas... O que um vizinho poderia fazer quase toda noite que produzisse o som de bolas de aço caindo e rolando pelo teto, por mais de duas, três horas?
Era uma história muito esquisita.
Depois de muito tempo, as irmãs conseguiram voltar a dormir. E o episódio dos ratos se repetiria por quase todas as noites... Até que Angélica casou-se com Eduardo.
Meses depois do casamento, Angélica veio visitar a irmã. "Você tem dormido bem, Atma?" perguntou Angélica, espantada por Atma não estar com medo de ficar em casa sozinha à noite.
"Ora, tenho dormido bem, sim!" respondeu, sem nem lembrar-se mais do episódio das bolas de aço rolando a noite toda pelo teto da casa. Aquele barulho que causava uma irritação nas entranhas da alma! Queria era esquecer aquilo, tocar a vida adiante, e realmente acreditar que fossem ratos malucos caindo pela tubulação do prédio antigo!
"E o barulho dos ratos?" fez Angélica. Estava com uma cara estranha.
"Ué, parou há muito tempo."
"Eu sei por quê," revelou Angélica, e Atma sentiu todo o seu corpo se arrepiar.
"Por quê? Me diga?"
"Porque agora é lá em casa que tem esse barulho!" disse Angélica, nervosa.
"Meu Pai do céu..." fez Atma, soltando uma respiração demorada, como se estivesse esvaziando um balão. Não era possível... Em um segundo, refez todas as cenas e chegou à conclusão óbvia: então realmente tratava-se de um fenômeno. Aquilo era tudo em que não queria acreditar. "Você já contou para o Eduardo? Digo, já contou que tinha esse barulho aqui em casa também?"
"Não, ele não vai acreditar."
"Como assim, não vai acreditar? Ele não é da Escola de Mistérios?"
"É. Mas ele também tenta ser prático, assim como você tentava aqui em casa. Tentava ficar me fazendo acreditar que era barulho de ratos. Você sabia que não eram ratos!"
"Ah, poderiam ter sido ratos, sim..." respondeu Atma. "Ora, qual seria a outra explicação?"
"Fenômenos espirituais," disse Angélica, incisivamente.
"Agora talvez eu me veja obrigada a acreditar... Porque não seria possível que no prédio novinho que vocês moram tenha problema de tubulações antigas com ratos caindo e rolando a noite toda..."
"Pois é..." concordou Angélica, sem saber o que fazer.
Cenas de uma senzala vieram à mente de Atma, e ela viu os calcanhares rotos de um negro fortíssimo, cujas pernas sangravam de dor. Porém, muito pior era a dor que lhe arruinava a dignidade do espírito. Essa era uma dor tremenda. Sinistra era a dor de Zuber!
(Obs: Preparei um líquido energizado para a Angélica aplicar na casa dela. Dois dias de aplicação e os ratos sumiram da casa dela e, depois de tantos meses de paz, voltaram para cá. Estou sozinha em casa escrevendo essa história. Estou com medo de irritar o Zuber e as bolas de aço não me deixarem dormir. Mas ele precisa entender que tudo aquilo já passou e que agora é tempo de perdoar. Eu peço perdão, em nome de minha vida passada e de meus ancestrais. Espero poder dormir bem esta noite, com a proteção dos Anjos da Luz. Atma.)