Eu sei, eu sei, Diário! Cada um de nós precisa acreditar na sua própria força. Não devemos dar ouvidos a ninguém. Precisamos seguir em frente acreditando nos nossos próprios sonhos.
É assim que todo mundo diz. E eu realmente acredito nisso. Claro! É tudo o que a minha grande amiga Priscila sempre me ensinou sobre a Lei da Atração... Que devemos sondar os nossos pensamentos, as nossas emoções... porque o modo como nos SENTIMOS ESCULPE A NOSSA VIDA.
Mas, como me disse meu amado preto Veio certa vez, “Fia, corre sangue nessas veias...” Eu sou feita de carne e osso, né, meu Deus? E muitas vezes é difícil resistir a uma bateria de reclamações a seu respeito e um monte de gente que te desacredita.
Mas... andava lá eu tentando me “encaixar no sistema”. Andava meio perdida na vida. Sem saber para onde ia. Dizem que as crianças índigo, quando nascem, mesmo que tentem com muita força, elas não conseguem fazer isso de se “enquadrar no pré-estabelecido”. Dizem que essa é a nossa missão (eu me incluo no grupo das índigo).
Então naquela época, quando a brisa do Egito ainda não havia soprado sobre mim e me feito lembrar quem eu era e qual era a minha missão de sacerdotisa de cura nesta vida, andava lá eu matriculada em um preparatório para concurso público em um cursinho famoso. Um dos mais caros da cidade, com um professor de grande fama, Celso Aragão. Ele era a assumidade em técnicas para redação, gramática da língua portuguesa, coisa e tal.
Uma das noites, eu fui para o curso. Meio entediada, mas me esforçando ao máximo para cumprir as regras, juro. Na semana anterior, eu havia deixado uma redação com o professor Celso para ele avaliar. A turma toda tinha feito a redação (mais de duzentos alunos!). Ele fazia questão de corrigir uma por uma. Ele tinha uma equipe que o ajudava a avaliar cada texto, mas ele passava o olho em tudo. O nome do curso levava o nome dele, afinal de contas.
Coerência, coesão, sinonimação, erros ortográficos. Tudo ele avaliava.
Sentei-me em uma das cadeiras, escolhendo um local mais ou menos na metade da sala. As cadeiras eram aquelas de madeira, com um cheiro empertigado. Não eram lá tão confortáveis. Não podíamos reclamar tanto, porque a sala tinha ar-condicionado. No calorão do Rio de Janeiro, era o que havia de mais importante.
E todos nós, os duzentos alunos, estávamos ali por um único e exclusivo motivo: estudar com o professor Celso Aragão. A aula dele realmente era um espetáculo. Naquele dia, havíamos saído de um longo feriadão e, ainda meio no clima dos dias passados, ele chegou na sala de aula de bermudão e chinelos havaiana. Eu achei aquilo o maior barato. (Adoro sempre que alguém foge à rigidez do sistema.)
O professor trazia debaixo do braço um chumaço de folhas de redações corrigas. Eu não estava em nada entusiasmada. Sabia que havia feito uma boa redação, porém nada fora do normal. No dia que o professor sugeriu os temas, eu acabara por escolher o título “Pagode na rua Santa” (ele tinha dado alguns títulos e, dentre eles, nós podíamos construir uma história), porque gosto dessa energia meio malandrinha, meio Arcos da Lapa.
Fui para casa e sentei-me no meu colchonete onde, ao redor, haviam pilhas e pilhas de apostilas. Direito Constitucional. Direito Administrativo. Direito Eleitoral. Informática (meu pior pesadelo! Argh!). Etc.
Recostei-me na parede do meu quarto, peguei uma folha de papel e... uma história começou a surgir na minha cabeça... Era um homem, o Mauro. Ele estava em um pagode na rua Santa... Ele pensava em uma mulata, a Renata, que havia tempos não via... E redigi os parágrafos que o professor pedia. Senti o quanto era prazeroso para mim escrever, contar histórias. “Ah, ia ser bom se fosse isso que eu pudesse fazer na vida,” pensei. Tornei a repassar o texto. Sempre tem alguns elementos para se consertar, incrível! Lapidar palavras repetidas, enxugar um pouco o texto, verificar se fugi do tema e tudo isso. (Obs: Nos meus diários, eu não estou tendo tempo para lapidar muito os textos. Estão seguindo um tanto in natura para vocês.) Foi quando então, pela primeira vez, eu senti a presença de uma criatura... um escritor famoso da nossa literatura, já desencarnado. Ele estava recostado ao meu lado, e me dava certas dicas de literatura. Ele gostava de escrever esse tipo de texto que mostra o dia-a-dia mais sacana da vida. Passamos a tarde a discutir sobre literatura e eu fui lapidando o texto, algumas vezes concordando com o meu amigo invisível, outras vezes não.
“Mas, N.,” disse eu. “Isso aqui não é nenhum concurso de literatura! É só uma redaçãozinha para um preparatório de concurso público!” xiei.
Ele ranhetou, “Tudo na vida vale a pena ser feito com muito esmero e capricho. Não importa para quê seja. Tudo tem grande importância.”
Eu não estava afim daquele sermão do outro lado da vida. Deixei o N. filosofando sozinho, dei uma última repassada no texto, e dei-me por satisfeita.
“Ah, isso é boa literatura!” brinquei, dando um peteleco na folha de papel arrancada de um caderno pautado. Vibrei para o N., “Gosto da sua companhia.” Ele vibrou o mesmo.
Mas ali, naquela sala de aula com o professor Celso, eu não pensava em nada disso. Eu só queria ver a nota! A nota que eu havia tirado na redação!
Assim que todos os alunos (ou quase todos) chegaram, ele iniciou a aula. Comecei a gravar a voz dele. Só que... eu não imaginava nunquinha que era de mim que ele ia falar!
“Boa noite, pessoal,” disse ele. Os alunos se calaram e houve um certo burburinho das máquinas de gravar voz sendo postas para funcionar.
O professor estava com um rosto solene, como se houvesse até um certo pesar em sua voz. Não combinava com o estilo que estava trajando. Que teria acontecido? Alguma notícia ruim para nos dar? Será que a banca escolhida para o nosso concurso público seria aquela que anulava duas questões sempre que a gente errava uma? Meu Deus do céu... Como é que ia ser uma prova daquelas, gente? Senti o meu estômago começar a queimar.
Eu tinha que passar naquele concurso público, meu pai do céu! A minha mãe não parava de falar aquilo para mim todos os dias! Eu sentia que... eu sentia que se eu não passasse nunca em um concurso, eu nunca “seria alguém na vida”. Meu estômago queimou ainda mais.
“Pessoal,” voltou a voz do Celso Aragão. “Eu estou com uma redação excelente aqui... E eu gostaria de ler esta redação para vocês,” disse ele, fazendo uma pausa e olhando para a turma. Eu não me movi nem um milímetro, porque nem sequer passou pela minha cabeça que pudesse tratar-se da minha redação.
“Mas antes de ler a redação,” ele falou, “eu gostaria de dizer que eu fico triste... eu me entristeço mesmo de saber que existe um talento desses por aí... que tem essa... essa ginga para escrever... mas este talento está perdido por aí sem ser reconhecido...”
“Nossa... o assunto é sério,” pensei, sentindo uma pontada de inveja desta pessoa que escrevia tão bem. Eu sempre amei escrever, mas nem de longe me consideraria um talento nato que possui tanta “ginga”.
O professor folheou as folhas que estavam na mão dele, até que encontrou uma... Era uma folha de caderno pautado arrancada. Mas a minha não era a única. Outros alunos entregaram assim. Mas nessa hora eu me mexi um pouco na cadeira. Será que o negócio era comigo?
Em um gesto instintivo, olhei para os lados para ver se alguém me olhava, se alguém já sabia. Ou se algum outro aluno já havia reconhecido a sua autoria. Gente, fala logo! Quem é esse prodígio que entristece o seu coração por não ter ainda o reconhecimento do público?
“Atma,” revelou o professor, ainda com aquele tom misto de admiração e tristeza. Eu continuei sentada na cadeira, mas o coração batia acelerado. E eu esticava um pouco o pescoço para ele me ver. Me encontrar no meio daquele mar de alunos.
Só que a turma era grande e o professor ainda não sabia que Atma era eu. Então ele pediu, “Atma... Eu gostaria de conhecê-la, se você não se importar... Eu vou pedir que você levante daqui a pouco para se apresentar para a turma e para mim, mas... primeiro eu quero ler a sua redação,” pediu ele.
Eu gostei da brincadeira, mas não me agüentei e virei-me para os colegas que estavam ao meu lado e confessei, “Atma sou eu! Sou eu, Atma!” um pouco mais empolgada do que deveria, talvez.
O professor então foi degustando em voz alta cada palavra, cada vírgula, cada frase, cada parágrafo. Foi desvendando cada sentimento do Mauro e de seu compadre, cada faceta da mulata Renata... E a turma seguia rindo, rindo, rindo. Rindo muito! E eu ficava rindo de mim mesma, rindo de tudo aquilo, rindo das risadas das pessoas. Tinha um senhor lá na frente que ria tanto que sacudia o corpo todo. Não sei se a história estava tão engraçada assim ou se todos nós fomos envolvidos por aquela grande alegria. Desconfio que sim.... Foi tudo junto. Uma mistura de energias. Entramos em sintonia. Éramos duzentas pessoas mais o professor mergulhando naquele pagode da rua Santa, nos Arcos da Lapa.
Era só uma redação, e não um conto longo todo entremeado. Contudo, realmente dava para sentir a ginga. Lembrei do meu amigo N., e felicitei-o. Afinal, alguns trechos eram de sua autoria.
Terminada a leitura da redação, o professor Celso girou os olhos por toda a sala, pedindo então para o “talento” se apresentar. Por um milésimo de segundo, me senti a pessoa mais feliz do mundo. Nunca lá em casa ninguém tinha me elogiado nem nada disso. Diziam que eu não tinha jeito na vida, que eu não sabia o que queria da vida, nunca tinha feito faculdade (eu tentava começar, mas depois via que não era aquilo). Levantei-me, no meio da sala onde eu estava, e fiquei de frente para o professor. Ainda estávamos todos contagiados por aquela alegria.
Eu sorri para ele, em agradecimento por tanta ternura. Todos os alunos se viraram para me olhar, para conhecer a autora. E o professor dizia, “Atma, eu gostaria de te dizer que... eu acho que você deveria pensar seriamente em ser uma escritora... Eu quero dizer: você é uma escritora. Naturalmente. Você tem um grande talento, menina! E eu quero te dizer que eu fico muito triste de não poder ser um homem muito rico agora, porque senão eu ia investir em você. Ajudar você a se tornar uma escritora. Escreva, minha filha. Escreva! Porque você tem essa ginga!” disse ele, dando um rebolado engraçado com a cintura que fez toda a turma mais um vez mergulhar naquele oceano de benéficas energia que nos envolvia.
“Nossa, professor... Eu não sabia...” disse eu, com sinceridade. Eu só não podia falar do meu amigo N. Não ali. Mas era minha também a autoria. Eu só havia recebido uma ajudinha, uma orientaçãozinha... uma orientação baita da boa!
Eu só sei que depois eu me sentei e a aula continuou numa boa. Regras de gramáticas. Dicas de pegadinhas. Questões das diferentes bancas.
No concurso, eu não passei. Eu não conseguia parar de escrever! Escrevia, escrevia, escrevia. Não era para entregar redações para o professor Celso, não. Eu continuava escrevendo em casa, no meu caderno de pensamentos e reflexões. Só que, a partir daquele dia, um sonho começou a brilhar no meu coração...
“Se o professor Celso acredita na minha ginga, por que serei eu mesma a duvidar de mim?”
Naquele dia, aquelas palavras, todos aqueles sorrisos, toda aquela energia... fez diferença para mim, sim. Quem disse que nós temos que fazer tudo sozinhos na vida? Desde que se passa a existir, passamos a interagir com o mundo... E, mesmo que queiramos negar, muitas vezes importa, sim, o que ouvimos das outras pessoas.
Todo mundo gosta de ser valorizado, respeitado, amado.
Eu até tentei um dia falar com o professor Celso de novo, para avisar a ele quando eu lancei o meu primeiro livro. E tentei avisar que vou lançar um outro agora, um romance. Porém não consegui encontrá-lo. (Preciso tentar mais vezes.)
Quando vou lançar meu próximo livro, meu primeiro romance? Ainda não sei. Estou esperando a resposta de algumas editoras para as quais enviei o exemplar. Uma delas entrou em contato comigo e disse ter se apaixonado pela obra, mas que infelizmente não tinha dinheiro para bancar a impressão dos livros por conta própria. E eu não tive dinheiro para ajudar nisso. (Talvez se eu tivesse passado naquele concurso público, rs.)
Mas, te juro, Diário. Ainda mais essa semana que a minha vó “morreu”... Isso não está me importando, não. O que me importa é que eu escrevo porque eu amo. Foi por isso que eu montei esse blog. Ele é uma estrelinha no meio dessa imensidão de gente aí que também ama escrever. O meu blog é uma estrelinha. Que tem a minha ginga. O meu talento particular. Que nem o professor Celso Aragão falou. E o meu amigo N. concordou de carteirinha.
Eu preciso... preciso confessar... o quanto aquele elogio foi importante para mim e mudou a minha vida. Até hoje, quando eu me sinto triste às vezes com medo do futuro, se algum dia eu vou conseguir passar em um concurso público e “conquistar a minha estabilidade financeira”, até hoje eu sento, acaricio a minha própria cabeça, procurando me acalmar, e me digo, “Eu tenho valor, sim.” E coloco de novo para tocar aquela milagrosa fitinha, desse dia tão alegre em que pus cento e noventa e nove alunos para gargalhar.
Amorosamente,
Atma.