(...) Atma dormiu cedo. No dia seguinte iria para outro evento xamânico, uma fogueira da prosperidade. Estava precisando mesmo.
No dia seguinte, Rodrigo e Priscila vieram buscar Atma para o ritual. Levaram uma hora e meia da Vila da Penha até lá. Foram de trem. Chegaram às oito em ponto. O ritual seria no pátio de uma casa simples, mas que também funcionava como centro de umbanda nos dias de semana.
O xamã Luz os aguardava no pátio. Trajava uma jaqueta franjada de couro marrom, e sandálias de couro e um cordão de sementes. Estava sentado no meio de um círculo fechado por vários tocos de madeira, cristais e ervas. O xamã saiu do círculo e abraçou os recém-chegados. Priscila e Atma ficaram sentadas conversando, enquanto Rodrigo juntou-se ao grupo dos homens que terminavam a arrumação do local.
“Devo ter morrido queimada na época da Inquisição! Sou muito medrosa quando se trata de fogo!” brincou Atma. “Inclusive, já me causou dificuldades no âmbito social e profissional!”
“Você está se referindo à tenda do suor?” perguntou Priscila. “Esquece isso, amiga!”
“Não, aquilo não foi nada! Já estive foi à beira de perder um emprego...”
“É? O que aconteceu?” riu Priscila.
“Foi na época em que eu morava com meu ex-marido. Eu trabalhava em uma empresa de exportações como secretária... Um belo dia, eu fui eleita como a responsável do andar pela equipe de prevenção e controle de incêndios. Como a minha mesa ficava logo na saída dos elevadores, minha posição foi considerada estratégica, de modo que recebi um kit: um boné branco com o número do nosso andar, um colete branco igualmente identificado, e uma placa com o número do nosso pavimento escrito em letras garrafais.
Minha função era: ao soarem os alarmes, alertar todos os funcionários do andar. Certificar-me de não esquecer ninguém, verificando copas e banheiros. Conduzir todos escadaria abaixo, da forma mais calma possível, até atingirmos o pátio dos fundos do prédio. Dos fundos, não o da frente. Segurar a placa bem alto para sermos rapidamente identificados pelos bombeiros. Era bem simples. Contando que se tivesse controle emocional.
Pois bem. Me deram o treinamento necessário e, embora não tenha gostado da idéia, contemporizei que eu tinha mais era que levantar as mãos para os céus, pois deste modo eu seria a primeira a ser informada em caso de incêndio. Pensando assim, aceitei a minha nobre função, e os dias seguiram normalmente. Tinha sido apenas um treinamento de rotina. Um belo dia...”
“Não!” adivinhou Priscila.
“Sim, Pri! Estava eu ao telefone com uma amiga conversando sobre uma promoção de xampus quando um homem irrompeu de dentro do escritório, abrindo violenta e abruptamente a porta metálica que dava para a minha saleta, tascou-lhe um baita soco na divisória, o que fez ressoar um som estridente por todo o escritório, e berrou, ‘Foooooogo! Avise todo mundo para descer!’ E, da mesma maneira súbita que surgiu, desapareceu pela escada.
Reagi imediatamente soltando um grito três vezes mais pavoroso que o dele, desliguei o telefone na cara da minha amiga depois de berrar, ‘O prédio está pegando fogo! Tenho que desligar!’ Eu tremia de pânico! Coitada da minha amiga! Quase morreu de susto!
Você achou mesmo que eu teria cabeça para lembrar daquela jaqueta e daquele boné? Pois não coloquei nem um nem outro, muito menos peguei a tal placa. Todavia, seria injusto dizer que não sinalizei, porque abanei os braços para o alto o tempo todo. Eu me orgulho de não ter abandonado o barco sem antes deslizar por todas as salas avisando a todos para ‘descerem correeendo!’ Minha sorte foi que, penalizado, um colega de trabalho me mandou descer que ele mesmo verificaria se faltava alguém. Achei incrível que os demais funcionários quisessem esperar para averiguar se o incêndio era mesmo grave! Afinal de contas, a orientação dos bombeiros é evacuar o prédio a qualquer sinal de fogo! Acho uma questão de prudência e não de antecipação seguir tal recomendação. Bom, ao chegarmos ao térreo, a administração informou que o incêndio já estava controlado. Havia três carros do corpo de bombeiros.
Além da bronca que levei por não ter seguido as orientações, alguns funcionários reclamaram que eu havia gritado além da conta. Sorte que a minha gerente intercedeu por mim, “Gente, era um incêndio! Por favor, o que vocês queriam?” Ela foi a primeira a evacuar a área, trazendo consigo a sacola com os produtos de beleza que acabara de comprar, o que lhe rendeu piadas por longo tempo.”
Priscila morreu de rir, mas logo foram interrompidas pela voz do xamã que anunciava o inicio da fogueira da prosperidade. Todos jogaram seus pedidos a fogueira e depois comeram o milho da abundância.” (...)