Cara de maracujá.

Diário do céu!

Me diz como é que pode uma criatura viver sem beber água o dia todinho praticamente?! Depois que comecei a trabalhar como shiatsuterapeuta, tenho ficado boba com a quantidade de gente que quase nunca bebe água. Muitas vezes, eles preferem o “chá do capeta” (modo carinhoso como apelidei os refrigerantes).

Semana passada mesmo, comecei a atender um senhor de quarenta anos. Magro que nem um vara pau. Pálido toda vida. Verde, muito verde a pele dele. E olha que eu sempre tive dificuldade em perceber a cor da pele das pessoas, hein? Sempre foi a matéria que achei mais difícil em Semiologia, durante todo o curso de Shiatsu. Mas o homem estava quase virando o incrível Hulk!

Cheguei à casa dele às sete em ponto, conforme havíamos combinado. (Pausa para eu beber a minha primeira xícara de chá verde do dia.) Um senhor muito simpático veio me atender, mas eu fiquei pensando que era um irmão mais velho do Paulo, ou um primo. Sei lá. Digo isso porque no email ele havia informado que tinha quarenta anos, e quem abriu a porta parecia ter bem mais. Mas logo, o idoso que abriu a porta encostou o indicador no peito e se apresentou como sendo o Paulo. Fiquei pasma com a perda de vitalidade dele.

Sentamos ao sofá. O Paulo falava, falava, falava. Eu fazia um milhão de perguntas, incluindo aquelas mais constrangedoras para o paciente, “Qual a consistência das suas fezes?” “Elas bóiam ou afundam, se arrastando pelo vaso e deixando aquele rastro pastoso pela cerâmica, fazendo com que depois você tenha que vir com aquela escovinha de banheiro para soltá-lo?”

O homem respondia a tudo. Estava colaborando. Ele me respondeu que as fezes dele eram miúdas, e saíam em formato de cocô de cabrito, em pequenas bolotinhas muito duras que inclusive doíam um pouco ao sair. Ele tinha um problema sério de prisão de ventre.

Pedi para ver a língua dele. Credo! Muito vermelha, seca e cheia de rachaduras. Pensei, “Meu Deus! Graças a Deus que esse homem me chamou. Ele está prestes a ter um ataque cardíaco! Seco e quente desse jeito!”

Sentei-me e, enquanto anotava alguma coisa no meu caderno, abri todos os meus centros de energia e solicitei ao Universo que, através de mim, espargisse todo o ambiente com o raio violeta do Alto dos Céus.

O homem recostou-se no sofá, conseguindo relaxar um pouco, e soltou um grande suspiro. Mas muito grande mesmo, como se ele tentasse apagar uma fogueira dentro do coração dele. Quase pude ver uma fumaça saindo pela sua boca.

Vendo que ele estava mais receptivo, levantei o olhar e, tentando não fazer uma cara de acusação, indaguei o mais suavemente possível, “O senhor bebe água?” (Era óbvio que ele não bebia, mas eu ainda não sabia a extensão do estrago.)

Ele se ajeitou todo no sofá, quase dando um pulo. Começou com um tique no pé esquerdo, que ele começou a estalar em rápidas batidas no assoalho de madeira, como se fosse um batuque. Um batuque acelerado como o coração dele. “Ah, isso eu quase não bebo!” confessou ele, de primeira, apalpando os óculos dele sobre a mesa e enfiando-os no rosto para me enxergar melhor, como se estivesse se preparando para alguma notícia muito espetacular que eu ia lhe dar. Como se tivesse pensado, “Ah, essa garota é esperta! Olha aí! Ela descobriu que eu não bebo água! Ela vai me ensinar... Ela vai me incentivar a beber água. É disso que estou precisando.”

Engraçado. Mas o Paulo não ficou com cara de mais velho colocando os óculos. Até o rejuvenesceu, e deu para notar o homem bonito que havia por trás daquela pele ressecada e cheia de rugas finas como rachaduras em um deserto.

“Estamos falando de qual quantidade aqui?” eu quis saber.

“Às vezes nem um copo de água por dia,” disse ele, cortante. Ele realmente não estava tentando me esconder nada. (É comum que os pacientes fiquem com vergonha de confessar que não bebem água.)

“Posso dar uma olhada na sua geladeira, senhor Paulo?” pedi.

Ele riu e concordou. “Pode.”

“Então vamos lá,” disse eu, e segui para a cozinha, sem esperar que ele me mostrasse o caminho. Eu tinha certeza que ia encontrar o chá do capeta por lá. Mas o que eu vi foi pior, muito pior...

O ar gelado do refrigerador tocou o meu corpo quente, causando-me um arrepio. Mas foi o que eu vi que me fez subir um calafrio pegando desde a base da coluna até o topo de minha cabeça e me fez clamar, “Minha Virgem Maria Santíssima! Tende piedade!”

Eram chocolates de todos os tipos. Garrafas de refrigerante de todos os tipos. Manteigas, ovos, requeijão. Muito requeijão! Amendoins. Salaminhos. Carne. Muita carne de todos os tipos. Uma cumbuca entreaberta com um restinho de lingüiças apimentadas. Um pote com azeitonas verdes. Outro com azeitonas pretas. E ainda um outro de conserva. Sal, um grande pote de sal refinado. Entretanto o pote do açúcar era maior. Dois tipos de doce de leite. Temperos artificiais sabor picanha, galinha e caldo de legumes. Tudo amontoado, muito amontoado na geladeira, em grande confusão.

Fechei a porta do refrigerador, estatelada. Respirei fundo, e voltei-me para ele. “Onde o senhor guarda os legumes, verduras e frutas?...”

“Iiiiiih!” fez ele, xiando alto feito uma locomotiva. “Eu não como nada disso!” respondeu ele, dando um estridente tapa nas próprias orelhas para logo em seguida colocar as duas mãos na cintura. Eu levei um grande susto... Aquilo era algum tipo de auto-punição ou coisa parecida? “Ele deu um “telefone” nele mesmo...” pensei, rindo-me por dentro.

“Chás, sucos, própolis, ração humana, linhaça?” arrisquei.

“Não. Não. Não. Não. E não,” disse ele, agora apoiando-se na porta da geladeira e cruzando uma perna sobre a outra. Depois que ele disse isso, ele mesmo deu uma alta risada, rindo de sua própria dieta de morte.

“O senhor está mesmo disposto a alterar algumas coisinhas na sua alimentação?” perguntei. Eu estava até com medo de fazer Shiatsu naquele homem. A energia vital dele estava muito baixa! E ele poderia estar com algum problema mais grave crescendo internamente. Era arriscado demais. Voltamos para a sala e expliquei a ele que a primeira etapa do nosso trabalho seria fazermos algumas alterações na dieta dele. Começaríamos apenas com uma massagem relaxante por semana. Dentro de um ou dois meses, conversaríamos novamente e passaríamos a fazer o Shiatsu.

Ele concordou.

Eu pedi para ele separar uma garrafa de dois litros de água todos os dias pela manhã para que ele pudesse controlar a quantidade que ele ingeria. Ele tinha que beber a garrafa todinha, todos os dias! Dois litros, pelo menos! Para começar. Para quem não bebia nem um copo d´água, estava ótimo. Depois nós passamos quase duas horas conversando sobre as alterações que eu sugeria para a dieta dele, e agora era ele quem anotava tudo com uma sede muito grande. Uma sede de melhoria de vida. De ter mais energia.

Depois eu falei, “Também, né, seu Paulo? O nosso corpo é feito de água. Todinho, se a gente parar para pensar... E o nosso sangue? É água, junto com os alimentos que ingerimos e com o ar que respiramos... Quando a gente não bebe água, tudo se enfraquece. Até os ossos. Porque os ossos parecem muito duros, mas na verdade eles são uma esponja. Uma esponja cheia de água por dentro. Já parou para pensar nisso? Água! Sangue e água! Não é a toa que na Medicina Oriental os ossos são do domínio do Qi do Rim...”

“Ah, é? Os ossos são ligados ao Rim?”

“Os ossos são sustentados pelo Qi do Rim... ou seja, pela energia do Rim... Mas não só a energia física. Na Medicina Oriental, cada órgão possui uma força não só física, mas também emocional e espiritual...”

“Ah, entendi...” comentou ele, parecendo entusiasmado.

“É por isso que quando não bebemos água estamos em sérios apuros!” disse eu, agora emprestando um tom mais dramático à minha oratória. “Porque todas as nossas células, toda essa esponja dentro dos nossos ossos, todo o nosso sistema de lubrificação corporal... tudo isso... fica gravemente prejudicado!” disse eu, fazendo movimentos quase fantasmagóricos com as mãos, para afetá-lo emocionalmente. “É por isso, senhor Paulo, que quando a gente não bebe água...” eu fiz uma pausa, para escolher melhor as palavras. Eu queria completar, dizendo, “É por isso que quando a gente não bebe água a gente fica parecendo um maracujá murcho.” Mas não dava para falar assim com ele. Completei da seguinte maneira, “É por isso que quando a gente não bebe água a gente se sente tão cansado e com tanta falta de vitalidade. Podendo até afetar inclusive a potência sexual, já que a base da nossa energia é o Qi do Rim, o elemento Água!”

“Ah...” fez ele, como se descobrisse um grande segredo. (No formulário da anamnese, ele dissera que vida sexual estava muito bem, porém eu tive as minhas dúvidas.)

Continuei explicando a ele sobre o Qi do Rim. Que se tratava da nossa pilha, da nossa bateria natural. Que era onde ficava a energia vital com que tínhamos nascido para viver toda a vida. Expliquei muitas coisas e, enquanto falava, eu espiava tudo ao meu redor, pensando na grande transformação que o senhor Paulo teria que empreender se quisesse recuperar a saúde.

Em uma das prateleiras da estante da sala, havia um sem número de remédios de farmácia. Cada um de um tamanho e uma cor. Sem nenhuma plantinha sequer para contrabalançar. Nem uma espinheira-santa. Nem um chá de erva-cidreira. Nem mesmo um capim limãozinho para perfumar, acalmar e até mesmo enfeitar. Nada. Só muitos, muitos remédios para dores em geral, alguns específicos para dores de cabeça, e alguns outros que eu nem desconfio para quê sirvam. Mas nenhum, nenhum remédio da natureza... da Mãe Terra...

“Ai que coisa mais triste, meu Deus do céu,” pensei, e me senti tão feliz por estar ali, conversando com o Seu Paulo sobre tudo isso.

“O senhor me dá um copinho d´água?” pedi, esticando muito os meus lábios para as laterais e levantando completamente as sobrancelhas. “Aproveite e beba um o senhor também.”

“Ah, vou beber mesmo. Vou beber!” entusiasmou-se ele.

O Seu Paulo voltou com os copos. Bebemos a água quase que ritualisticamente. Os dois copos dele, ele bebeu de olhos fechados, com o tronco muito esticado, as duas pernas muito abertas na cadeira, afastadas para os lados. Pela transparência do copo de vidro, pude ver seus dentes amarelos e desgastados e sua grande língua vermelha, por onde o líquido milagroso deslizava, ganhando o interior de seu corpo. Era como se ele tivesse encontrado um oásis no meio de um deserto quente e árido.

“Muito bem, senhor, Paulo. Muito bem,” incentivei eu. Água, meu pai do céu. Água! A coisa mais simples do mundo, meu Deus...